Diário do Imigrante Mathias Schmitz

DIÁRIO DO IMIGRANTE MATHIAS SCHMITZ




"Após o sofrimento vem a alegria!"





Este ditado já tornou-se verdade para muitos. Também em minha vida revezam-se sofrimentos e alegrias.



Talvez seja interessante para mim ou outro, dar um olhar sobre o decorrer de minha vida. É por esta razão que resolvi escrever o que aconteceu comigo. Antes de começar, quero porém pedir que perdoem o meu escrever; desculpar meus erros gramaticais e sim concentrar-se mais no sentido da minha narrativa do que na ortografia.

Já como escolar e mais ainda como adolescente, eu tinha uma aversão enorme pela emigração e principalmente para o Brasil. Somente ao ouvir o nome já sentia arrepios, porque imaginava a terra bem diferente do que mais tarde conheci.

Eu imaginava uma terra totalmente selvagem, onde seus moradores eram seres humanos só na denominação e que mais se pareciam com animais. Uma terra na qual, atrás de cada arbusto corria-se o risco de ser mordido por uma cobra ou outro animal selvagem.

Uma terra onde não se podia dar um passo em segurança, sem o perigo de ser preso, morto e assado pelos selvagens, que acompanhavam os moradores.

Mas mesmo com todos estes perigos em mente: seja como Deus quiser! Aqui na Alemanha não há futuro para mim. Eu resolvi acompanhar, aos 20 anos, meus pais e mais outros emigrantes para o Brasil.



Onze famílias, entre as quais estavam filhos e filhas já adultos. Partiram certo dia, cantando alegremente, do pequeno lugarejo de Loeffeischeidt no Hunsrück, para um novo lar. Muitos dos emigrantes derramaram lágrimas amargas ao se despedir de parentes e amigos, pois era um adeus para sempre. Depois que paramos por alguns minutos numa elevação, até onde quase todos os moradores do lugar nos acompanhavam, eu também com olhos marejados de lágrimas, olhei pela última vez o lugar onde nasci. Por pouco não desistia da viagem, se meus amigos que também partiram não me tivessem encorajado, afirmando sempre que só no Brasil encontraria a felicidade. Logo me senti mais confiante e assobiando alegremente, subi nas caixas e cofres que estavam amontoados numa carroça e lá seguimos pela estrada até o Reno. Numa pequena cidade de nome B., localizada lá mesmo, pernoitamos. O cuidado com a bagagem ficou a cargo dos mais velhos e nós moços, fomos à próxima taberna, onde, com uma boa garrafa de vinho e alegres brincadeiras, permanecemos até o dia raiar. Logo de manhã, caixas e malas foram levadas até o vapor que nos levou até Koeln. Ficamos um dia nesta bela cidade; admirava surpreso as bonitas vitrines. Visitei a igreja, onde numa prece pedi proteção a Deus para a viagem que teríamos que enfrentar. No outro dia, era 10 de outubro, seguimos de trem para Ostende, uma cidade na Bélgica e de lá partiríamos até a cidade de Dunquerque, na França, onde nos esperaria um veleiro que nos levaria ao Brasil.

Antes que eu continue na descrição de minha viagem, preciso mais uma vez retornar ao meu lugar de nascimento, para esclarecer melhor os leitores sobre a minha partida, e aos desagradáveis acontecimentos que se seguiram.

No ano anterior, 1845, antes de emigrarmos, foi fundada no Brasil uma nova cidade de nome Petrópolis (residência de verão do imperador) e que diziam fora colonizada quase exclusivamente por alemães. Por este motivo o governo brasileiro fez um contrato com um certo armador de nome D., da cidade portuária de Dunquerque, na França, e que por conta do governo brasileiro levaria certo número de emigrantes até a cidade do Rio de Janeiro, para colonizar Petrópolis. Para reunir estes emigrantes, o citado senhor D. contratou vários agentes que angariavam pessoas interessadas em vir ao Brasil. Verdade é que o número de emigrantes aquele ano foi tão grande que ultrapassou o número estipulado. Apesar do governo brasileiro correr com todas as despesas dos emigrantes, estes ainda eram enganados e explorados pelos agentes. Tinham muitas vezes que entregar até a última moeda que possuíam. No ano seguinte, ano em que eu emigrei, os agentes espalharam que mais um determinado número de emigrantes podia partir para o Brasil, e somente as despesas até a cidade portuária seria por conta de cada um. Além de tudo, o Brasil era lembrado como paraíso na terra. As pessoas recebiam boa terra e uma bonita casa, tudo livre de qualquer despesa. Não era de admirar portanto que tantas pessoas se punham a caminho do Brasil. Na maioria eram pessoas que na Pátria nada mais tinham a perder e que mal conseguiam reunir o dinheiro para chegar à cidade portuária de França. Mas muitos pensavam: "você conseguirá levar os teus, mesmo que tenhas que passar fome e sede, serás recompensado pelo governo; ele prometeu e deverá cumprir a promessa". Mas tudo foi bem diferente. Logo que os emigrantes chegaram a Dunquerque, o armador exigiu o preço da passagem na íntegra, dos que queriam ir ao Brasil. Mesmo o argumento de que o governo se incumbiria do pagamento ele não aceitou. Sua resposta foi de que ele nada tinha com o governo brasileiro, e que cada um devia cuidar de si mesmo. Agora então tivemos o conhecimento de que fomos enganados e alguns que ainda possuíam um pouco de dinheiro pagaram o exigido. Alguns veleiros foram aprontados para receber os emigrantes. A maioria no entanto tinha que aceitar o destino. Não podiam seguir para o Brasil e o que era pior, também não podiam voltar. Quem encontrava trabalho na cidade ficava e muitos foram mendigar. Diariamente o número de enganados aumentava de tal maneira que a cidade sofreu uma enchente de alemães, que por força maior tiveram que pedir seu pão na porta de moradores. A miséria tornou-se por fim tão grande que o governo francês expediu vários navios com estes alemães logrados para a África, só para livrar a cidade do excesso de pessoas. Por fim nenhum emigrante podia mais passar a fronteira da França sem apresentar antes um certificado de armador D., no qual constava que o frete da bagagem estava pago e D. se comprometia oferecer hospedagem e comida ao referido emigrante, e quando se apresentasse oportunidade, enviaria o mesmo ao Brasil.

Justamente nesta época, cerca de 40-50 famílias, entre as quais eu também me encontrava, estávamos prontos a viajar de Oeste para a cidade portuária Dunquerque. Aconteceu um grande contratempo. Recebemos a notícia de que não nos era permitido atravessar a fronteira sem apresentarmos o exigido certificado. Se não tivéssemos dinheiro suficiente para cobrir as despesas seria melhor voltar para casa. O último nada nos agradou. Já não tínhamos mais casa nem propriedade. Por felicidade estava conosco o agente do armador D., por ordem do qual nós empreendemos a viagem. Este se vira obrigado a nos acompanhar, porque eu estava de posse de algumas cartas do agente e se as mesmas caíssem em mãos da polícia, ele seria preso e invariavelmente condenado por fraude. Somente o medo levou-o a interceder junto ao armador D. para que fôssemos transportados, não de todo gratuitos, mas por um preço baixo. Este agente, como ele mesmo contara, também tinha sido enganado pelo armador, pois o mesmo lhe afirmara que as condições da viagem eram as mesmas do ano anterior, isto é, por conta do governo brasileiro. (citado agente, mais tarde teve que abandonar a Europa clandestinamente, porque era perseguido pela polícia). Veio ao Brasil, onde eu pessoalmente falei com ele, pois ficou vários dias na colônia alemã. Logo desapareceu e foi encontrado mais tarde esfarrapado, morto de fome e sede, numa mata próxima. Teve um fim horrível.

Nós permanecemos alguns dias em Ostende e neste meio tempo, o agente foi procurara o armador para tratar de nossa viagem. Certo dia veio o armador pessoalmente e começou o debate e os acordos. Primeiro o mesmo não estava interessado em negociar, mas, por fim concordou em aceitar 40 Taler para pessoas acima de doze anos e 20 Taler para pessoas abaixo de 12 anos. Muitos não tinham nem esta soma e novos debates se iniciaram. Por último o armador deu-se por satisfeito com 2/3 do preço. Começou então nova negociata entre os passageiros emigrantes, quem tinha dinheiro emprestava ao que nada tinha, para pagar quando chegasse ao Brasil. Eu mesmo pedi emprestado 50 Taler para cobrir as despesas de meus pais e irmãos. Sobraram assim mesmo 11 famílias; 3 da minha região, que não conseguiram dinheiro suficiente para a passagem. Estas famílias mais tarde foram acompanhadas pela polícia até a fronteira e enviados de volta à cidade de onde vieram. Que estes tiveram um destino lamentável é compreensível, pois tinham vendido tudo o que possuíam.



Agora que a negociata com D. terminara, foram providenciadas carroças que transportavam caixas, caixotes, malas e pessoas até a cidade portuária.

Chegamos diante das portas da cidade onde a polícia não permitiu nossa entrada até a chegada do armador, para que esse assumisse a responsabilidade de todos nós, no que se referisse a alimentação. No porto estava ancorado um navio com destino ao Brasil e já algumas famílias encontravam-se nele. A este foi logo transportada nossa bagagem e nós também embarcamos, podendo pernoitar no navio.

No dia seguinte (era, se não me engano, 19 de outubro), o veleiro levantou âncora e partimos. Éramos 220 pessoas a bordo; todos emigrantes e fomos logo atacados pelo enjôo. Todos procuravam um canto para deitar-se. Não sentíamos nem fome nem sede. Logo que esta fase terminou e nós melhoramos, um mal bem pior nos surpreendeu. Era disenteria que uma família trouxera a bordo. Esta terrível doença atacou a quase todos, inclusive a tripulação! Que miséria reinava entre os doentes! Aqui alguém gritava por água, acolá outro pedia para morrer. Desta doença morreram durante nossa viagem (6 semanas), 27 pessoas, na maioria adultos, cujos corpos eram atirados ao mar. Numa noite, eu me lembro, 3 corpos de uma só vez foram atirados ao mar. De várias famílias morreram o pai e a mãe deixando de 4 a 5 crianças pequenas mas que logo foram acolhidas por outras famílias caridosas. Comida tinha o suficiente, mas o capitão não entregava. Mesmo para um doente não se obtinha nem um pouco de água para fazer uma sopa, imaginem outro alimento. Quando tentávamos explicar a necessidade de um doente e que o mesmo implorava por comida, ele apenas respondia: Nada! Morre! Bom para os peixes! E viravam as costas. Uma única vez, depois de implorar muito, ele me vendeu uma garrafa de vinho por 5 francos para meus pais. Mas em compensação, numa outra ocasião quando pedi água, para um doente, a xícara me foi derrubada com um tapa na mão e jogada no mar. A comida que recebíamos era demais para morrer e muito pouco para viver. Consistia em "água com café", batatas semi-apodrecidas, um pouco de carne salgada e pão velho. Se nós pelo menos tivéssemos recebido somente pão e água, já teríamos ficado satisfeitos. Mas era água duvidosa que diziam ser café, às 10 horas da manhã, e às 4 horas um pratinho de água morna com pedaços minúsculos de carne salgada ou cabeças de peixes salgadas. Esta foi a alimentação dia após dia, durante todas as semanas de viagem. Como ficávamos contentes quando chovia e podíamos recolher a água e guardávamos até a última gota. Se nós tivéssemos levado tanto tempo para a viagem como outros navios que chegaram ao Brasil, isto é, 5 a 8 meses, nenhum de nós teria sobrevivido. Os que não morreram de disenteria teriam morrido de fome e de sede.

Quando a viagem já estava chegando ao fim e a miséria da comida aumentava, todos os pais de famílias e jovens, postaram-se armados diante da cabine do capitão e exigiram comida e água ou se vingariam. Isto resultou em efeitos positivos. O comandante mandou buscar pão e distribuiu boa quantia a todos. Também um barril com água potável apareceu e todos puderam saciar sua sede. Igualmente a cozinha apresentou uma comida melhor, mas isto foi só um dia; depois tudo continuou como antes.



No que se refere ao tempo, a nossa viagem foi boa. Somente uma vez tivemos que enfrentar um temporal e todos tiveram que recolher-se nos camarotes. Neste temporal um mastro foi derrubado, mas não sofremos outros danos.

Certo dia, após 6 semanas em alto mar, quase mortos de fome, avistamos terra: era o Brasil. A alegria que todos sentíamos era imensa, pois agora estávamos livres da prisão e só um grito percorria o navio: Terra! Todos que podiam, arrastavam-se até o convés do navio, para certificar-se de que era verdade mesmo. A terra crescia à nossa frente e ancoramos perto da cidade. Agora estávamos num continente estranho, cheios de esperança e angústia, separados para sempre da pátria. Aqui pretendíamos encontrar a felicidade. Todos que podiam permanecer no convés admirando a grande cidade do Rio de Janeiro.

Não muito tempo o navio estava ancorado, quando recebemos, vindo em uma canoa, um alemão, que serviria de intérprete e um médico. Por estes senhores fomos interrogados sobre nossa viagem e nosso tratamento a bordo. Foi então que podemos contar tudo o que nos acontecera. Logo o médico foi visitar os doentes, dos quais ainda tinham muitos. Receitou remédios que mandou buscar na cidade. O capitão recebeu a ordem de cuidar com uma melhor alimentação, principalmente para os doentes. Esta ordem foi cumprida. A partir de então os doentes receberam, em vez de água morna, até uma canja com carne de galinha. Os outros também receberam comida melhor; repentinamente havia tudo o suficiente. Os tempos mudaram para nós. O comandante andava mal humorado pelo navio e se pudesse teria atirado a comida ao mar. O médico vinha diariamente visitar os doentes e verificar a alimentação. Até na cozinha entrava para ver o que estava sendo preparado para nós. Vinham também várias canoas até o navio levar frutas, principalmente bananas e laranjas, que para nós era a comida preferida.

Foi aqui que eu vi pela primeira vez em minha vida negros. Em cada canoa vinham 2 ou 4 remadores. Eram bem pretos, dentes alvos, cabelos crespos, estrutura robusta, sem camisas ou camisetas, só vestidos com uma velha calça até os joelhos. O calor era muito grande e o suor corria-lhes pelo corpo fazendo-os brilhar como ébano. Ao vê-los pela primeira vez, senti um calafrio percorrer meu corpo. Perguntava a mim mesmo como era possível escravizar estas pessoas, pois eram seres humanos como nós.

Dez dias tivemos que permanecer a bordo, antes que pudéssemos ir a terra. Diziam que era por causa da doença, pois os brasileiros tinham medo que a mesma se espalhasse pela cidade também. Mas eu acreditava que o motivo era bem outro e pela seguinte razão: desde que tínhamos chegado, vinha um senhor, que parecia ser um funcionário no Rio. Este homem vinha em companhia de outros e um intérprete alemão. Trazia uma grande folha de papel que estava escrito em português e alemão. O que queriam? Este senhor tinha grandes áreas de terra numa região onde fazia bem mais calor, mas do nome não me lembro. Estas terras ele queria colonizar com alemães. Eis o motivo porque trazia aquela folha de papel e que os alemães teriam que assinar. De acordo com o escrito, cada alemão receberia margem de terra para um certo preço. Os primeiros três anos nada precisávamos pagar; só a partir dos três anos, tendo 6 anos para o pagamento. Quem não tivesse feito até então o pagamento teria que pagar juros. O proprietário também prometeu uma longa ajuda em alimentos e ferramentas, que poderíamos pagar mais tarde. Teríamos que assinar o contrato e o mesmo navio nos levaria ao destino. Foi justamente a mim que escolheram para ler o papel; provavelmente acreditando que eu era o mais entendido em escrita. Depois de ter analisado tudo muito bem eu disse: "todos podem fazer o que acharem melhor, mas eu, meus pais, meus irmãos, queremos primeiro desembarcar, estar em terra firme. Ali quero informar-me e se achar conveniente, então assinarei. Numa terra estranha não se pode assinar qualquer compromisso à primeira vista". Depois que eu falei isto os senhores voltaram a terra. Mas no dia seguinte voltaram e assim faziam diariamente. Por fim viram que tudo dependia de mim e prometeram-me uma gratificação, mesmo terra sem pagamento, se eu convencesse os outros a assinar o contrato. Mas eu estava firme em meu propósito de primeiro desembarcar. Mais tarde soube por um alemão fugitivo daquela região, que devido ao péssimo clima quase todos morriam.

Quando o comandante viu que não chegávamos a nenhum acordo, ele nos liberou depois de 10 dias da nossa chegada. Na cidadezinha, Praia Grande, que ficava defronte ao Rio, fomos liberados. No mesmo dia o capitão mandou chamar todos ao convés e exigiu de nós o restante do frete, pois D. só tinha pagado 2/2 do mesmo. O comandante alegou que o armador lhe mandara cobrar o restante na chegada e se não fosse efetuado o pagamento ele podia embargar toda a bagagem. Agora o desespero era grande, ninguém tinha mais dinheiro. Os homens pediram, as mulheres imploraram, mas nada adiantou; sem nossos haveres fomos desembarcados. O que fazer agora? Para onde ir? Lá estávamos deitados todos na praia, até que alguns brasileiros acercaram-se de nós, indicando por gestos um rancho abandonado que poderíamos ocupar. Lá tínhamos que passar a noite sem comida, sem bagagem, sem cama, o que seria de nosso futuro? As mulheres começaram a lamentar a sorte, as crianças choravam, outros rezavam, outros discutiam. Algumas mães vendo o desespero dos filhos, foram a uma padaria e por sinais indicavam que queriam pão para seus filhos famintos, no que também foram atendidas.

Também eu fiquei a noite toda analisando a situação. Num país estranho, onde não se conhecia ninguém, os 5 francos que me restaram tinham ficado a bordo numa caixa. O que fazer? Mas eu tinha que encontrar uma solução! Resolvi então seguir numa das canoas na manhã seguinte até o Rio e procurar o cônsul da Prússia. O dinheiro para a canoa pediria emprestado de uma pessoa que ainda tivesse algum. Quando amanheceu fui até a cidadezinha à procura de uma canoa que me levasse ao Rio. No caminho encontrei um senhor, que pela aparência parecia alemão e o interpelei. Realmente era alemão e vivia na cidade. A sua pergunta, confirmei que pertencia ao grupo de imigrantes recém-vindos e contei-lhe nosso drama. O mesmo achou por certo procurar o cônsul e se dispôs a acompanhar-me. Antes convidou-me à sua casa para um café, o que não aceitei, explicando-lhe que precisava primeiro solucionar o problema de meus companheiros; mas eu o esperaria mais tarde no galpão. Contente regressei e contei aos meus amigos que tinha encontrado uma pessoa que nos ajudaria. Nem meia hora depois o meu conhecido chegou. Pegamos uma barcaça a vapor e fomos até o Rio. Lá procuramos primeiro o cônsul da Prússia, mas fomos muito mal recebidos por ele. Disse-nos ele que tinha outras coisas a fazer do que cuidar de imigrantes, que deveriam ter ficado de onde vieram. Quando estávamos novamente na rua, meu companheiro sugeriu procurar outro cônsul, fosse ele de Hamburgo ou Bremen ou outro europeu. Fomos bem recebidos pelo cônsul de Hamburgo. Tive que contar toda nossa viagem, o mau trato que recebemos, etc. Então soube que o armador D. Estava desacreditado pelo governo brasileiro, porque no ano anterior tinha acontecido muitas irregularidades. O cônsul pediu que nós o acompanhássemos e o mesmo nos levou para um salão onde estavam reunidos alguns senhores, que logo mostraram-se interessados em minha história. Pediram o nome do comandante e do veleiro, prometendo tomar providências e que nossa bagagem ainda seria liberada naquele dia. Contentes nos despedimos, agradecendo todas as gentilezas. Era hora do almoço e eu sentia uma fome terrível, pois não comera durante todo o dia. Meu novo amigo sofria do mesmo mal e convidou-me para comer, o que também fizemos e ele pagou a despesa.

Ao sair do restaurante, tivemos que esperar um bom tempo até a chegada da barcaça. Meu amigo mostrou-me um pouco a cidade. Vi bonitas vitrines; no mercado enorme quantidade de laranjas, das quais chupamos algumas. Meu companheiro não cabia em si de contente porque pudera ajudar-nos.



O comandante, por ordem do Rio, entregou aos imigrantes seus objetos. Mas infelizmente muito ainda faltava; algumas espingardas, tachos, panelas de cobre, caixas foram arrombadas e o conteúdo roubado. Minha própria mala, duplamente fechada fora arrombada. No dia seguinte eu pretendia procurar o cônsul outra vez para explicar o que acontecera.

Um dos males estava solucionado, mas logo apresentou-se outro. Panela tínhamos, mas nada para por dentro e com o qual pudéssemos acalmar nossa fome. Ainda vivíamos na espera de que o governo cuidaria de nós, mas estávamos enganados. Nada aconteceu. Restava apenas uma solução: mendigar, apelar para o bom sentimento dos moradores e assim fizemos. As mulheres se puseram a caminho e também foram bem recebidas; trouxeram provisões e até dinheiro.

Eu mesmo estava sentado num monte de lenha em frente ao rancho, pensando numa solução.



Estava resolvido a escrever uma carta ao imperador pedindo auxílio e eu pessoalmente entregar-lhe esta carta.

Redigi a carta, contando o que nos havia acontecido na viagem e de nossa atual situação. Depois eu queria mandar traduzir o escrito e possivelmente encontraria outra pessoa caridosa que nos ajudasse. Expliquei o plano aos meus companheiros de infortúnio e pedi que, que,m pudesse ajudasse com um pouco de dinheiro. Todos concordaram entusiasmados e conseguiram a soma de 8 mil réis. Levei mais um jovem de nosso grupo, bastante vivo para acompanhar-me. Precisávamos de auxílio para não morrer de fome. No dia seguinte partimos para o Rio, pedimos informações a um dono de restaurante alemão, sobre uma pessoa que pudesse traduzir nossa missiva e ele nos forneceu e endereçou o nome de uma pessoa capacitada em faz-l.o. Fomos procurá-lo e ele fez o que pedíramos. Pagamos 4 mil réis pela tradução e lá partimos em direção ao palácio imperial. Quando chegamos, soubemos que o imperador não encontrava-se no palácio, mas sim em sua residência em São Cristóvão, 2 horas distante do Rio. Para não perder muito tempo e chegar logo, tomamos um fiacre por 400Rs. E em uma hora chegamos ao nosso destino.

Na residência imperial, entramos primeiro num grande e lindo jardim e a primeira pessoa que encontramos foi o jardineiro, que era alemão de nascimento. Cumprimentamo-nos alegremente, contamos nossas desditas e explicamos o que queríamos. Pedimos ao jardineiro que nos acompanhasse para servir de intérprete. Não demorou muito e este regressou com a notícia que o imperador não receberia.

Quando fomos anunciados ao imperador, ficamos nervosos e nosso coração batia com força. O jardineiro, vendo nosso receio, encorajou-nos e disse que o imperador era um homem bom e compreensivo.



Mais confiantes subimos a escadaria e nos dirigimos ao salão onde estava o imperador. Logo que nos viu, veio ao nosso encontro sorrindo amável e nós nos sentimos mais à vontade. Entregamos a nossa carta que leu com atenção. Fez várias perguntas e nossas respostas foram interpeladas. O imperador prometeu ajudar-nos a tomar todas as providências necessárias para resolver nossos problemas. Satisfeitos e alegres nos despedimos cerimoniosamente e saímos. Conversamos mais um pouco com o jardineiro que nos convidara à sua casa. O caminho de regresso tivemos que fazer a pé pois como era tarde, já não havia mais nenhum fiacre.

Agora manifestava-se a fome. Compramos um pedaço de pão, um pedaço de carne e tomamos um copo de aguardente. Quando chegamos ao poeto verificamos que não havia mais barcaça que nos transportasse ao outro lado. Soubemos que após as 18 horas, o preço pelo transporte estava liberado. Podiam cobrar o preço mais elevado. Como tínhamos apenas 1 mil réis, estávamos em apuros, mas nada adiantou conversar com os negros. Eles por sinais, nos faziam entender que queriam 4 mil réis pela travessia, o que realmente não tínhamos. Perto um senhor escutou a nossa conversa sinalizada e condoendo-se, pagou 4 mil réis e mandou que o negro nos levasse até o outro lado. Mais uma vez sentimos a gentileza dos moradores. Ao chegarmos, tivemos que contar todos os detalhes o nosso encontro com o imperador. A alegria foi total, mas cedo demais; novamente nós nos sentimos enganados. Dia após dia passava e nada acontecia. A necessidade de alimentos tornou-se tão grande, que fomos obrigados outra vez a esmolar. Havia muitos moradores que ajudavam de bom coração; outros batiam a porta quando nos viam e analisando as constantes visitas que nos fazia aquele homem, querendo que assinássemos o compromisso para ir às suas terras, me fez pensar que talvez eles estivessem impedindo a ajuda prometida. Mais uma vez resolvi procurar o imperador. Novamente fiz uma carta e mandei traduzi-la e junto com o tradutor fui procurar o imperador, que desta vez encontrava-se no palácio. Pedimos que os guardas anunciassem e recebemos permissão para entrar. Já não sentia mais receios e confiante subia as escadas. O imperador nos recebeu num grande salão, mas não estava sozinho. Vários senhores estavam presentes. Entreguei outra vez a minha cartinha, quando o mesmo veio ao nosso encontro, e uma irritação profunda espelhou-se em seu rosto,quando a leu. Chamou um dos presentes e comentaram sobre o que eu havia escrito. Em seguida se dirigiu a nós e gentilmente falou-me, pediu desculpas de que tínhamos esperado tanto tempo em vão, mas agora tudo seria resolvido; que eu fosse tranqüilo para junto dos meus. Um pedido no entanto não podia conceder; ao Rio Grande do Sul não nos poderia enviar. No entanto havia três províncias que poderíamos escolher, Santa Catarina, São Paulo e Espírito Santo. Podíamos pensar a respeito e mais tarde quando interrogados, dizer por qual nos decidiríamos. Contentes deixamos a sala de audiência e voltamos para casa, transmitindo a mensagem do imperador. A alegria não foi tão estrondosa como a primeira, mas grande foi a satisfação que sentimos quando à tarde veio uma canoa carregada com alimento; carne, pão, café, açúcar, arroz, feijão, trigo, sal, etc.

Agora terminara nossa miséria. Todo dia vinha uma canoa nos trazer o necessário durante um mês, tempo que estávamos recolhidos à Praia Grande. Durante este tempo pesquisamos qual das três Províncias seria a melhor. Todos aconselharam a de Santa Catarina. Diziam que o clima era saudável e os alemães ainda seriam estabelecidos próximo da cidade. Por tanto nos decidimos por Santa Catarina.



Certo dia chegaram vários barcos e nossa bagagem assim como nós, fomos transportados a um veleiro brasileiro. Levantando âncoras, partimos em direção a Província de Santa Catarina. Fomos muito bem tratados; comida e água suficientes. O único problema era o espaço. O navio era pequeno para tanta gente, e a maioria permanecia no convés. Algumas vezes fomos surpreendidos por fortes chuvas e ficamos molhados até os ossos. Depois de uma viagem de seis dias, chegamos são e salvos ao porto de Santa Catarina. Ainda no mesmo dia fomos levados em barcos, com todos os pertences, até a cidade e lá instalados num grande galpão. Na cidade fomos bem recebidos, porque os alemães tinham fama de bons trabalhadores e nós éramos os primeiros a chegar depois de 20 anos.

Nos primeiros dias recebíamos diariamente mantimentos, assim como no Rio. Apesar de que nada tínhamos a reclamar da comida, para nós seria de maior valor um auxílio financeiro. Alguns dos companheiros foram procurar o presidente da Província e explicar o caso. Este ficou satisfeito porque economizaria nas contas. Agora a diária por pessoa era de 160 Rs., que pagavam pontualmente cada mês. Era em verdade muito pouco, mas dava para viver, porque os alimentos eram baratos. Muitos conseguiram trabalho na cidade durante o dia e podiam economizar um pouco para o futuro. Este auxílio recebemos por 18 meses.

Algumas horas de viagem da cidade, na estrada imperial para Lages, cidadezinha no planalto, receberíamos terra. Junto a uma estrada! Isto é de grande vantagem para a colônia, pensei quando soube da notícia. Estávamos na cidade cerca de 2 meses, quando fomos noticiados de que seríamos transferidos para nossas terras. E realmente, no mesmo dia ainda fomos transferidos com tudo o que possuíamos no barco, para a outra margem e mais horas e horas rio acima. Ali fomos instalados primeiro em casas particulares brasileiras, até que uma família após outra fosse levada de carro de boi.



Não chegamos logo à nossa terra porque as medições não tinham terminado. Três horas de caminhada a partir do último morador e floresta adentro, fora construído um grande barco onde todas as famílias foram alojadas.

Eu me recordo da minha surpresa quando vi a estrada imperial. Na Europa eu nunca vira uma estrada tão ruim. Coberta por mato onde rasgava-se a roupa, com cada passo atolado na lama até os joelhos.

E esta era a estrada principal da Província.

Hoje em dia pode-se afirmar que parece com uma estrada.

Logo depois de minha chegada ao barraco, eu fui em companhia de meu melhor amigo, fazer uma visita a São Pedro de Alcântara, colonizada há 20 anos passados (1826) por alemães e que distava um dia de viagem da nossa. Enrolado em um pano algumas peças de roupas, nos pusemos a caminho, para chegar no dia da festa do Espírito Santo. Depois de caminhar um trecho, fomos obrigados a tirar as pesadas botas, pois atolávamos na lama a cada metro. Depois da chuva nos dias passados, os riachos estavam altos e pontes não existiam. Algumas vezes tivemos que atravessar riachos com água até o peito. Certo riacho meu amigo atravessara bem e eu valentemente o segui, mas num instante perdi o contato com o chão e fui arrastado pela água. Numa margem consegui alcançar um galho e segurar firme, depois de recuperado do susto e com o auxilio de um amigo alcancei a margem. Estava molhado até os ossos; troquei de roupa e seguimos caminho. A noite nos surpreendeu antes de chegarmos à colônia e não tivemos outra escolha a não ser procurar um abrigo. Ao longe vimos o brilho de uma fogueira e nos dirigimos para lá; encontramos dois negros junto a um fogo e por sinais lhe explicamos que queríamos abrigo, se o permitissem. Os dois concordaram e nos indicaram um lugar perto da fogueira. Cansado da viagem nos deitamos para descansar. Dormir foi impossível devido ao frio. Na Europa também senti frio, mas nada podia ser comparado com o que sentia agora. Nos sentamos junto ao fogo, aquecendo uma vez o lado direito outra o lado esquerdo, mas de nada adiantava. Os dentes batiam e quase não conseguiam pronunciar palavras. Com meu amigo acontecia o mesmo. Ficamos aliviados quando ouvimos um galo cantar. Logo que o dia clareou deixamos o rancho, pois pensar em café ou outra comida não adiantava. Quando saímos da porta, a terra sob nossos pés se partia e olhando em volta vimos tudo branco; a região estava coberta por uma grossa camada de gelo. Foi a primeira geada que vi no Brasil. Felizmente o caminho melhorava para nós e não tivemos mais que tirar as botas. Se tivéssemos que fazê-lo, ou ainda cruzar um rio a nado, teríamos morrido de frio. Ficamos felizes quando após meia hora de caminhada chegamos a uma casa cujo dono era alemão. Tiritando de frio entramos e ele nos acolheu com uma xícara de café. Também nos serviram um bom almoço e muito tivemos que falar sobre a Europa, da qual já há 20 anos não haviam mais ouvido falar.



Acendemos nossos cachimbos e novamente continuamos nossa jornada. Após uma hora alcançamos nosso destino. Na pequena colônia perguntamos por uma hospedaria, que não existia, mas os moradores contentes e hospitaleiros, chamaram-nos e ofereceram suas casas, porque todos estavam ansiosos em ouvir algo de sua terra natal.

Com a instalação e a vida dos alemães neste lugar fiquei muito satisfeito; parecia que tinha voltado para a Alemanha. No dia seguinte na festa, reuniram-se muitos alemães, homens, mulheres e crianças, todos vinham a cavalo dos lugares mais distantes para assistir os cultos nas igrejas. Tanto aqui como na Alemanha, notei que os moradores não desligavam-se dos divertimentos, pois logo que a missa terminou, o povo seguiu para o lugar de dança. Apesar da música só ser executada por uma clarineta e um violino, foi uma satisfação enorme observar o colorido e a alegria do povo. Ao anoitecer, muitos retiraram-se para suas casas e outros ficaram até amanhecer. Nós que estávamos cansados, deitamos cedo, agora numa boa cama e dormimos até que o sol nos despertou. Permanecemos alguns dias na colônia visitando um e outro colono; sempre bem recebidos. Ficamos surpresos com a boa instalação de todos, grandes e verdes pastagens com gado bonito e saudável. Com o firme propósito de trabalhar com afinco, a fim de chegar também a possuir uma propriedade tão próspera, regressamos ao nosso rancho.



Alguns dias depois desta viagem manifestei o desejo de visitar as medições das terras destinadas para nós. Parti em companhia de um jovem que já nascera aqui; queríamos chegar até onde trabalhavam os homens. Espingarda sobre o ombro, um grande facão na cintura, um saco com mantimentos, estávamos prontos para partir. Como ainda não existia uma estrada, mas sim somente uma picada, em alguns lugares tivemos que arrastar-nos no chão. Tínhamos esperança de chegarmos antes do anoitecer ao local onde os homens trabalhavam, mas assim não aconteceu. A noite nos surpreendeu e nada de homens. Eu fiquei com medo da noite na floresta, onde já durante o dia não se via nem 5 passos à frente. Tateamos ainda no escuro até que a escuridão fosse completa e nos obrigasse a ficar no lugar. Acendemos uma fogueira e pudemos ver um pouco à nossa volta. Com o clarão das chamas, vimos que estávamos próximos a um riacho, o que foi muito bom, pois pudemos saciar nossa sede e preparar algo para comer. Depois de fortificados fomos deitar. Eu não conseguia dormir com todo o ruído que o vento fazia nas folhagens. Já pensava em índios e animais selvagens; fiquei feliz quando vi o dia clarear. Partimos para nossa jornada e após uma caminhada de duas horas chegamos ao local de trabalho dos homens. Ficaram surpresos e contentes quando nos viram. Como recepção preparam uma boa xícara de café. Ficamos com eles o dia todo e também à noite. Na manhã seguinte empreendemos a caminhada de regresso bem cedo, para não sermos surpreendidos pela noite novamente.



Quando a terra terminou de ser medida, recebemos nossa parte; quanto maior a família maior a terra. Rapazes sem família recebiam 100 braças de largura e 1.000 braças de comprimento (200 margem); pais de famílias recebiam125-200 braças de largura e 1.000 de comprimento. Agora chegou a hora de trabalho. Enquanto os pais e filhos munidos de machado, facas, foices e facão começavam a preparar a terra para construir um rancho, as mulheres e crianças pequenas permaneciam no galpão comum. Semana após semana o trabalho continuava e aos poucos o terreno ganhava forma. As casas improvisadas foram ocupadas e iniciou-se a construção do mobiliário e o trazer dos pertences até a colônia. Não era um trabalho fácil, porque o caminho era apenas uma picada. Tudo que era trazido levaria pelo menos algumas horas de viagem. Por fim tudo estava no seu devido lugar e a família pode começar a semear. Os primeiros anos foram cheios de dificuldades, mas depois também isto normalizou-se e as colheitas foram mais gordas.

Dia após dia clareava a floresta e sempre mais crescia a colheita. Muitos anos passaram-se e a colônia prosperou. Todos os colonos que vieram comigo ao Brasil prosperaram e chegaram a uma razoável estabilidade. A viagem a Desterro para a qual naquele tempo gastava-se dois dias, hoje se faz em um dia. O ditado: "após o sofrimento segue a alegria", concretizou-se nesta colônia.

Tão pouco como eu, todos os outros sentem mais saudades da Europa. Aqui em Theresópolis, no Brasil, Santa Catarina, encontraram sua felicidade.



Theresópolis, 1867.





Obs.: Extraído do Calendário para os alemães no Brasil. São Leopoldo: Rotermund, 1899, pp. 79 - 107, sob o título "Aus dem Leben eines Deutschen in Brasilien", organizado por H. Schauffler - professor na escola de Teresópolis. Publicado sob o título "A Vida de um Alemão no Brasil" na revista Blumenau em Cadernos, Tomo XXVIII, Nº 5, maio de 1987, pp. 153 - 163.



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